domingo, 31 de maio de 2009

"FOME DE QUÊ?"

Faz vinte anos que, numa cidadezinha interiorana a uns 90 km daqui, quando eu ainda era um infante e meu pai e meus tios me levavam para pescar, aconteceu o inverno mais inesquecível da minha vida. Mesmo hoje, 1940, eu não consegui tirar da cabeça o dia no bosque próximo àquele lago que costumávamos pescar.

Na noite anterior a todas as pescarias, tinha que dormir cedo com a promessa de me comportar lá, pois ninguém gostava de crianças em pescarias por serem barulhentas e sempre afastarem os peixes. Contrariando minha mãe, que não gostava nada quando me levavam pra lá. É que eu tinha estomago fraco e voltava sempre “botando as tripas pra fora”, mesmo assim eu batia o pé para deixar que eu fosse. Então dada às sete da noite não tinha escolha: cama!

Noutro dia, cinco da matina e mesmo pregado de sono eu estava lá de pé ansioso pra participar daquela reunião dos homens da família. Algumas vezes o meu sono era tamanho que me deixavam pra trás. Era inverno, acho que Julho, e meu pai ali de pé na cozinha já estava a fazer seu café. Eu esperava quieto, tomava um copo de leite morno com achocolatado, apesar de eu sempre vomitar em viagens quando bebia muito leite. Uma buzinada lá fora era o sinal que meus tios haviam chego e como sempre, estavam com pressa. Tudo pronto, eu bem agasalhado, saímos com nossa sacola cheia de anzóis e linhas de pesca, potes de maionese vazios e pazinhas que seriam usadas para pegar minhocas quando chegássemos. Lembro que eram viagens demoradas dentro do fusca azul do meu tio, mesmo que meu primo fosse conosco e que no caso sempre era uma distração, um entretenimento mais adequado já que tínhamos a mesma idade, ainda assim eram viagens cansativas na qual dormíamos uma parte do trajeto.

Quando estavam de bom humor me deixavam levar meu cão, que por onde eu estava o levava. Seu nome era Cachorro, lembro bem da coleirinha que fiz com seu nome. Eu sei, era um nome bem idiota, mas eu era um garoto e nem sei explicar os motivos dessa escolha além do óbvio. Ele era um vira-lata e geralmente eu ficava mais calmo quando estava na companhia do meu amigo preto e branco.

Nesta ocasião, iam dois tios meus, meu pai, meu cão e eu. Choveu a noite inteira e a viagem pareceu então mais longa ainda. Durante o trajeto lembrei-me de mamãe, que não estava mais conosco e meu pai dizia ter viajado pra longe. Ao invés de irmos direto para o lago, chegando à cidade pegamos uma estradinha de terra cercada de goiabeiras e entramos num pequeno rancho. Quiseram parar pra pegar uns frutos e tão logo a porta abriu, Cachorro saltou e correu pelo grande gramado ao lado. Era quase oito da manhã, e como já disse, choveu durante a noite. Agora restava só uma garoínha. Eu estava ouvindo a barriga roncar então aceitei um dos frutos que meu tio me ofereceu. Sua casca verdinha até brilhava, lustrosa. Tinha cheiro de coisas do mato assim como todo o lugar. Mordi a pequena goiaba e um gosto de fruta estragada encheu minha boca. Foi muito desagradável nem precisa dizer né. Pior que ainda riram de mim pela careta que fiz ao cuspir aquele teco nojento de goiaba longe. Decidi correr atrás do meu cão e deixá-los com suas risadinhas. Era um gramado plano e mesmo à distância podia ver onde estava o fusca e também mais à frente onde estava a casa do Sr. Firmino e sua esposa Dona Célia. Cachorro corria brincando com um graveto e quanto mais eu me aproximava dele mais ele corria de mim em direção da casa velha. Conforme meu cão se aproximava de lá eu diminuía meu ritmo até que parei quando ele deu a volta por trás da casa, na direção do bosque logo adiante, e o perdi de vista. Eu não gostava daquela casa, era iluminada apenas por lampiões a gás que criavam sombras pelos cantos, tinham quadros estranhos de crianças chorando e alguns cômodos estavam sempre trancados e por mais que apenas os padrinhos de meu pai morassem ali, certa noite que pousamos lá, mamãe ouviu diversos ruídos de móveis sendo arrastados dentro daqueles quartos, e foi a única e última vez que ela viria conosco. Lembro que ela odiava tudo no local.

Voltei correndo pro carro, percebi que eles não estavam lá. Tranquei-me no fusca e fechei os vidros. Senti-me sozinho, queria chamar por eles, porém fiquei quieto e em uns minutos eles apareceram de novo. Disseram que tinham visto um tatu e que tentaram pegá-lo. Falei que Cachorro tinha se perdido, mas mal me deram ouvidos. Eu estava preocupado, pois era um bosque bem fechado e escuro, os raios de sol mal passavam pelas folhagens das copas das árvores de lá e Cachorro devia de estar assustado. Logo ele voltaria, disseram. Eu não estava tão certo disso.

Limpamos os pés sujos de barro em um ferro posto perto à porta especificamente pra isso e entramos. Os homens deixaram seus casacos nos ganchinhos que tinham atrás da porta e trataram de chamar o Sr. Firmino, que aparentemente não estava por ali. Havia muito pó sobre aqueles móveis coloniais pretos, e um monte de panelas antigas penduradas numa espécie de varal na cozinha. Ah, não havia fogão como aqueles que tínhamos em casa, era algo feito de tijolinhos e barro batido, com um buraco enegrecido com lenha e carvão dentro. Uma coisa bem curiosa e contrastante com o lugar era o gramofone encostado ao lado de uma poltrona antiga na sala. Tinha até uma manivela no artefato e tinha um disco pequeno de vinil tocando. Era uma ópera, tocava tão baixinho que suspeito que ninguém a não ser eu a notou. Decidiram ir logo para o lago e voltarmos a tempo do almoço. Eu não queria ir sem meu cão e não queria ficar ali também, mas não havia escolha e fui com eles.

As memórias de uma criança nem sempre são muito nítidas e às vezes me questiono se era imaginação demasiada minha quando saindo de lá avistei o Sr. Firmino totalmente enlameado da cintura pra baixo e com um machado numa das mãos. Fiquei assustadíssimo, a visão me deixou mudo e assim eu fiquei enquanto o fusca se afastava.

Eles até estranharam que durante a pesca eu tenha ficado tão comportado, mas não era dia pra peixe e a pesca rendeu poucas tilápias. Ajudei a pegar minhocas, a tirar os peixes dos anzóis, e nada me despreocupava. Acompanhei o silêncio daqueles homens por frias horas, pus minhas mãos nos bolsos do casaco vermelho que vestia e sentei cabisbaixo até que decidiram que era bom me levar pra comer. Enquanto voltávamos, me distraí desenhando cachorros nos vidros embaçados do carro, um dos meus tios sorriu pra mim e falou que tudo ficaria bem depois de uma boa refeição. E de fato, seria impossível esquecer o gosto das canjas que Dona Célia preparava, era uma cozinheira de mão cheia. Enchia de cheiros a cozinha toda e não foi diferente desta vez. Tão logo entramos os aromas preencheram o ambiente e até eu me animei um pouco mais. A velha senhora estava lá mexendo no panelão alguma iguaria sem par e sem muitas cordialidades seguiu dizendo que era melhor comermos antes que esfriasse. Mamãe teria brigado comigo por sentar à mesa sem ter lavado as mãos, mas nenhum dos mais velhos me exigiu coisa sequer. Sentavam-se todos falando ao mesmo tempo e as risadas altas me relaxaram e logo até eu estava sorrindo com os gracejos do Sr. Firmino.

Na mesa, tinham além dos pratos de alumínio esmaltado, canecas com o que parecia suco de limão e também amoras numa tigelinha. Tudo era bom. Como das outras vezes que tinha ido pra lá, todos comemos muito enquanto conversávamos e brincávamos. O cozido desmanchava na boca, macio e suculento. Eu já havia comido até empanturrar quando notei dentro da panela de cozido algo reluzindo, que retirei com uma colher de pau e coloquei no meu prato já vazio. Era como uma moeda de prata... Era a medalhinha onde estava escrito o nome do meu cão. Num pulo saí da mesa subitamente, enquanto todos paravam e me olhavam, eu apavorado com uma voz que lutava pra sair, perguntei:“—Onde está minha mãe?!”

Consciência

A consciência acaba sendo o maior mistério entre tudo que existe. a concepção de certo e errado. o que faz uma pessoa ter a convicção que comer carne é algo ruim e outra que não vê problema nenhum em trabalhar num matadouro?

sexta-feira, 29 de maio de 2009

"CARNE E UNHA"

Me olha

Me encontra

Me carrega

Não me deixa!

Por que me julga tanto se já deitou comigo?

Lembra que te visitei nas noites que acordou em suor

E não ouvi de você nenhuma palavra de carinho

Antes dancei com você à luz da lua

Agora me entrego pelo seu flerte na rua

Seus sorrisos foi eu que dei

Então não corre!

Por que me despreza depois que passamos a juventude juntos?

Ofereci prazer carnal e desenhei pra você sonhos de lascívia

Ofereci o gosto do vinho, do prato refinado, de pele salgada e lábios tão tenros

Sei que provoco você, sei que te faço os olhos brilharem

Sou tudo o que você quer e ainda sim trata-me com desdém

Nada te diverte sem mim, eu sei

Então não foge!

Me vesti pra você

Lembra que te arranquei suspiros

Me despi pra você

E falou mal de mim mais de uma vez

E sentiu agua na boca mais uma vez

Tudo fica sem graça sem mim, eu sei

Então me agarra!

Me renega mas não tem jeito

Somos carne e unha

Você e eu estamos presos

Estou em você, te vejo ao meu lado

Me chamo Desejo mas me chama Pecado.

Olha pra mim

Me reencontra

Me carrega onde for

Não me deixa por favor!

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Anjo

Na busca de entender o mundo a nossa volta a humanidade criou várias imagens e mitos para explicar o que acontecia no mundo. então o que é mais real, algo que alguém criou a séculos atrás ou o que você mesmo criou na sua mente?

domingo, 24 de maio de 2009

Playstation 3 - INFAMOUS

Esse jogo é exclusivo para Playstation 3 e conta uma história de um cara que acorda no meio de um caos, onde as pessoas nao sabem o que aconteceu de verdade para a cidade estar toda destruída. O diferente desse jogo é que o cara acorda com poderes elétricos em seu corpo e de acordo com o desenrolar da maneira que vc o controlar, ele pode ser bom ou ruim. Suas ações é que determinarão a personalidade do protagonista. O game está previsto para sair em Junho próximo. Baixei uma demo na Playstation Store e a primeira impressão do jogo é muito boa. A sensação de liberdade e grande. Podemos subir em carros, prédios, bater em quem quiser, sugar a energia vital de qualquer um. Abaixo segue um link do youtube para acompanhar algumas cenas desse jogo que promete muito.

domingo, 17 de maio de 2009

Bom dia, boa tarde, boa noite.

Olá. Sou o Dandrade, muito prazer ou não. Será que consigo escrever as coisas que sinto? Será que consigo humorizar tudo que me faz rir? Tenho coisas a serem escritas e através do blog...bom...através do blog é onde eu talvez consiga colocar meu lado Gregory House para fora. Para começar, uma frase de um filme chamado "Coach Carter - Treino para a vida", com Samuel L. Jackson: "O nosso maior medo não é que sejamos inadequados. O nosso maior medo é que sejamos poderosos além da conta. É a nossa luz, não a nossa escuridão, o que mais nos assusta. Os atos insignificantes não servem para mundo. Não há nada esclarecido em se encolher para que os outros à nossa volta não se sintam inseguros. Todos nascemos para brilhar, como fazem as crianças. Não esta só em alguns de nós, está em todos nós. E a medida que deixamos a nossa luz brilhar, inconscientemente, damos permissão para os outros fazerem o mesmo. quando nos libertamos de nossos medos, nossa presença automaticamente liberta os outros. " Até daqui a pouco. Obs: Grade, não sei usar o Blogger, portanto não me xingue okay?

sexta-feira, 15 de maio de 2009

O FIM

"Olhe, Olhe, Olhe o céu, como está escuro. Olhe como a escuridão chega rápido do horizonte até aqui! Bolhas de nuvens negras Explodindo em toda direção Consumindo todo o branco dos altos Devorando cada pedaço do que os olhos podem explorar Mesmo de longe, Daqui de longe, Dá pra perceber o que esta acontecendo O verde da copa das árvores e dos gramados agora é vermelho. Todos sabem que é o fim. Um Sol obstruído Por tóxicos e poluentes Dejetos do desenvolvimento humano Consumindo cada pedaço do que poderiamos provar O vento sopra Sopra forte, Este frio que agora sente não tem como findar Tudo o que os noticiários ridicularizaram já é fato. Todos sabem que é o fim. Nem o dinheiro Nem seu conforto ou seus bens Nem mesmo o concreto luxuoso que o separa dos demais Podem impedir que seja tocado por um inverno nuclear. Nem sua fé Nem seus segudores ou seus dizimos Nem mesmo os templos adornados que o eleva aos demais Podem impedir que seja tocado pelos desastres naturais. Nem sua cor Nem seus aliados ou suditos Nem mesmo no mais profundo abrigo material Podem impedir que seja tocado pelo fim. Pois todos sabem que este é o fim. Todos sabem que este é o fim.

Novos colaboradores!

Olá Gasparzinhos! Bem, acredito que em breve nós teremos um acervo mais variado por aqui. Estou mantendo alguns contatos com possíveis colaboradores, desde escritores profissionais, poetas reacionários, artistas de cartoons, desenhistas profissionais, etc... acho que lá pro próximo mês, já teremos alguns links interessantes ligados a este também, mas como estou fazendo tudo sem pretensão alguma, as coisas vão no seu próprio ritmo. Então até mais fantasminhas...

VIDA COMUM pt.3

""Arrrrrggh!!!" Um grito rompe todo o silêncio dormente no isolado corredor dos fundos da escola. O som percorre e preenche o local vibrando e fazendo tremerem as vidraças quase soltas do cortiço ao lado, onde os últimos raios do alaranjado sol teimam em refletirem, dando vazão repentinamente às sombras geladas lembrando um grande balde de tinta preta jogado do alto do edifício escolar escorrendo prédio abaixo. Um grave e estendido doloroso grito, bem próximo do urro que os ursos emitiriam se vissem um de seus filhotes agonizando, preso em um garrote de caça. Sua grisalha cabeça despenteada sofria o iminente ataque de uma dor descomunal, um tiro de espingarda seria mais sutil. De repente, quando caiu, em suas pernas de gravetos, então os paralelepípedos sua face encontrou. Durante as dez horas estendidas de miragens nos dois a três minutos em que ficou desacordado sonhou com um precipício no qual caía, ouvia ao longe as ondas chegando à costa, uma revoada de gaivotas cantando em coro desorganizado ao tempo que o corpo frio e molhado, cuspido do alto mar e arrastado às primeiras areias idem um náufrago despertando aos crepusculares raios solares. Mantinha cerrados os dentes diante tamanho açoite, quando posto em pé pelas gordas e afáveis mãos da cozinheira começou a recordar onde estava e apagar o delírio. E, com a mesma velocidade que veio, o delírio se foi... "- O senhor precisa é de um bom prato quente de sopa" - disse a mulher baixinha, traços hispânicos, de avental e touca, com a voz tão aconchegante quanto à poltrona de um casebre em Campos do Jordão, onde se podiam ver os balanços e os galhos flexionados pelos ventos contínuos vindos do sul e sentir o cheiro da terra após a chuva. Segurança se refletia nos pequenos gestos da pequenina senhora no banco de madeira no qual se sentava frente a ele, a vestia de Avó, e feito tal, empurrou em sua direção um quente e repleto de cheiros saudosos prato da sua sopa de ervas que o aqueceu e o fez esquecer-se do por que estava ali, naquela silenciosa e agradável conversa, fazendo-o esquecer da sua aula também. Ela não perguntava, e ele por sua vez não respondia coisa sequer. Uma sala do tempo a cozinha, um panteão livre das questões e motivos, ele sem máscaras, ela sem vozes. A cabeça reclinada sobre o prato, verdes campos invadindo as narinas, roubando-lhe a atenção para a saída da cozinheira sem nome, que a falta só foi sentida ao breve levantar de cabeça tempo depois. Só, ele levantou. Tinha terminado a refeição, então seguiu sem pressa até a porta de madeira que sustentava um calendário de três anos atrás e num toque, abriu aquela que dava de encontro à viela tênebre quanto os pretos pêlos do cão deitado poucos passos a frente. Os estalos e ruídos da porta sem óleo nas dobradiças fizeram o cão ouriçar as orelhas, esporadicamente levantar e correr para longe, deixando o jornal no qual possivelmente estivera deitado há horas voar pelo estreito. Um passo. Outro. Voltou pra casa sem perceber, estava lá e pronto. As chaves rodaram, ele pôs o casaco no cabideiro detrás da porta, deixou a visão ir de um canto a outro da sala espremida do "apertamento", a mulher esparramada no sofá e nela esparramados estavam restos de sanduíches carnosos, regada à luz azulada da TV, um riso pregado num canto da boca sujo do que deveria ser maionese, num sono profundo. Dava dó de pensar em Morpheus com a pobre criaturinha a ninar. A TV mal sintonizada num programa de ginástica quase o fez rir. Um erro cabal seria despertar a Bela Adormecida. Todos estavam felizes assim. Em silêncio foi ao banheiro e deparou-se com uma cena nojenta até para Hannibal: pedaços de irreconhecíveis coisas nadavam no vaso, estendendo-se às bordas e parte do piso jade gasto. O fedor entrava com força pelo nariz e boca do Professor, forçando-o a cobri-los e retirar-se tão rápido sentiu o cheiro. Foi até a TV e a desligou desimportando agora se o assoalho rangia ou não. Pegou o casaco e saiu. Foi a última lembrança da noite anterior quando, às lambidas dum cão vadio, acordou, e jogado na calçada da Av. do Estado estava. O amargo gosto de cerveja e bile se confundiam com o gosto de despertar em sua boca, os olhos semi-fechados buscavam desembaçar a visão, e o sol mesmo obscurecido por nuvens cinza ainda lhe dava trabalho pra distinguir onde era chão e onde não era. Havia chegado ao ponto de não recordar onde morava, e o vômito que cobria parte do seu ombro era prova de que algo tinha de ser feito. Juntou os míseros trocados, uns R$ 20,00 e cambaleou até a escada espremida de uma casa de Strip logo ali que, no caso, poderia ser o mesmo lugar onde passara a noite toda enchendo a cara, mas era o lugar onde poderia chegar mais rápido e poder encontrar um pouco d'água para se lavar antes de cair em tropeços causados pela embriaguês. Aos trancos foi subindo e por sorte não desabou do ápice dos cinqüenta degraus. Como não havia ninguém na recepção, largou as moedas sobre o balcão e foi logo entrando, e olhando pelo corredor do bordel, uma porta encontrava-se escancarada diante dele. Entrou, foi seguindo na direção do banheiro somente um pouco mais limpo que o seu no momento, e lá estava uma banheira cheia de água quente que o convenceu a pôr a mão pra testar a temperatura; "- Está ótima." - sem que preocupasse com um devido residente do quartinho. Tirou o casaco e os sapatos com a lentidão dos idosos, e os colocou lado a lado recostados numa chinela de couro posta abaixo dum roupão de banho branco pendurado num gancho de parede, retirou as calças, afrouxou a gravata e desabotoou a camisa, desajeitadamente arrancou-lhe um botão que ao cair, rolou pelo piso e enfiou-se num canto do ralo no chão nem caindo nem se desprendendo, como descobriu ao tentar pegá-lo. Entrou na banheira. Foi escorregando e permitiu-se o afundar por completo. O som não significava nada dentro daquele mundo, e ele era grato por isso. De lá, via o teto de gesso como um caleidoscópio albino e o tremular brando dava vida ao roupão, um fantasma de lençol, como nos desenhos animados. Viu o aproximar de um vulto grande cobrir a luz que passava pela porta aberta do banheiro, aproximar e repentinamente retirar detrás das costas um objeto de um meio metro em forma de "L", "a chave inglesa!" Tornou do fundo com o olhar fixo na figura, mas, no entanto, fora d'água ninguém encontrou. Ergueu-se e saiu, cobriu o corpo com o roupão. O vapor era muito denso e o obrigou a esfregar a manga no espelho pra poder se ver. Seu rosto era diferente, outra pessoa, e seus olhos azuis eram mais escuros que nanquim. Aproximou-se mais e reparou que eles tinham a exata forma de um ralo; até o botão da camisa estava lá. Daí, num reflexo perdido no embaçado, viu o vulto novamente, mas não tão rápido quanto esperava. Uma enorme mão segurou sua cabeça com força enlaçando os dedos em seus cabelos e empurrando-o contra o espelho, que pela pancada foi estilhaçado estranhamente sem causar um titilar sequer. O roupão coloriu-se de vermelho num jorrar que não se sabia vir da boca ou nariz, deixando a clareza de que o rosto do professor agora realmente não seria mais o mesmo. Ficou tonto, rodou e levou a mão ao rosto, sendo golpeado pelo ferro na nuca. Caiu com metade do corpo dentro da piscina rósea e ao tentar sair dali, foi impedido pelos fortes braços do grandalhão. Seu ar estava fugindo dos pulmões em meio aos surdos gritos que emitia, as bolhas de ar eram tantas que o impediam de discernir se o que via diante da fuça era porcelana rachada da banheira ou suas veias saindo dos orifícios buconasais e outros criados pelo estrago no crânio. Sua agonia em busca de respirar foi tamanha, porém as grandes mãos o seguravam submerso, mas não seria este o fim, não sem respostas. Lutava com todas as forças, até que num espasmo volveu de onde estivera: havia relaxado completamente ao ponto de ter dormido e quase afogado no leito. Assustado ainda pelo descuido deu fim ao desastroso descanso, percebendo a aura estranha em que o lugar estava envolto logo que seus olhos se abriram. O sonho foi real até demais e certamente o levaria a falecer, caso já não estivesse sóbrio. Fez como no sonho, levantou e o roupão branco vestiu. Ouvindo no cômodo seguinte o mesmo som que o de sua batalha borbulhante em recuperar o fôlego, passou a ir a sua direção, e quando lá chegou ficou pasmo e certo que ainda haveria de despertar. A boca nem fechava e pregou os olhos na coisa que se banqueteava à mesa quadrada do quarto, rangendo os restantes dentes que pendiam. A carcaça pôs-se a falar, com um pedaço de carne crua arrancado de uma iguaria em seu prato posto mais parecida com um órgão humano. "-Um estômago... humano... sim senhor!" - disse o cadáver decomposto de seu pai, enquanto mastigava desengonçadamente um pedaço do bife preso ao garfo, demonstrando certo esforço pra serrar a carne. "-Mais precisamente o de sua esposa. Sabe moleque, ela já estava... abusando, então eu peguei... pra mim o que ela... maltratava tanto. Eu aceito um agradecimento..." "-Você está morto há anos, nunca apareceu nem nos meus aniversários então fale logo o que você quer?" - respondeu enquanto encarava o viscoso defunto. "-A queridinha Maria sentia vergonha de si, até tentou evitar seu... estado deplorável. Sempre chorava quando seu amado maridinho não voltava após o serviço, que dó! '[NHAC!]'(finalmente engolindo o naco sangrento) A coitada nos seus últimos dias vomitou sem parar pensando que assim ficaria magricela. Não é pra rir? Fiz um favorzinho pra você" - prosseguiu meio as próprias risadas macabras sem levantar a face em direção ao Professor "- por que você não senta aí e ouve o que eu vim te dizer, depois vai pra casa e dá um pouquinho de prazer pra pobrezinha hein?" Os miolos pulsavam pelo arrombo na extremidade do morto e escorriam conforme o maxilar abria e fechava feito um suculento bolo de nozes. Curiosamente, estranhava e reparava a aparência nada peculiar do cérebro do ser, ignorando a presença do ser em si, sem questionar se os sentidos o confundiam. Cerrou os olhos por certo tempo, e os abriu notando que o barulho irritante do garfo e faca raspando na louça não cessaria com o feito, já certo de que sua mente não era mais sã. Decidiu calar-se. Estava entregue à situação. "-Você passará por dias horríveis... filho. E noites. E você vai tombar... frente à grande peste que assola essa terra. Você ainda irá rezar pra ter de volta a vida que rejeita. Vai chorar, conhecerá a dor... antes de iniciar uma guerra maior... dentro da sua cabeça... e se perder, então você estará comigo. Na noite que você viu... a Noite... naquele beco, eu atendi seus chamados, te chamei. Espero não ter de chocar seu rostinho de bicha de novo contra um espelho pra você entender o que vim dizer. A praga devorará você, começando por dentro até não couber mais... seja forte e entenda o que você é. Não deixe que dobrem você e não sinta medo, não seja um covarde... Faça o que digo e não o que fiz!"

VIDA COMUM pt.2

"Após aquela madrugada, sua vida não seria mais a mesma. Olhando de longe, ele poderia se passar por mais um insignificante professorzinho de segundo grau como outro qualquer, patético até, um rosto antiquado e abatido assim como os muitos presentes à frente de uma lousa nos colégios decréptos da ignorante São Paulo, porém, perdida em seus olhos, uma fagulha de felicidade e perversão que só podia ser vista muito de perto, coisa um tanto estúpida de se fazer em se tratar do novo homem que do preto fosso saiu, que claramente jogava todas as outras pessoas pra fora do seu recém criado mundo de fantasias onde ele era o construtor absoluto, o supremo criador dos sonhos e pesadelos do seu ego. Criou um herói da causa de seus medos e nunca mais refém destes; -"É... devo ensinar algumas coisinhas por aqui..."- era o que se pegava a dizer entre os intervalos das aulas em meio a um e outro copo de café da sala dos professores, por sinal, frio e amargo, imitando o comportamento dos outros velhos cansados sentados cada vez numa distância maior do estranho professor, de barba há dias sem fazer, mesma gravata bege com a ponta suja de lama e cabelos embaraçados como os de um garoto que se levanta às dezoito horas apenas para ir à escola buscar bagulho. Sua face enrugava conforme sorria para os alunos, nada falso, porém assustador, intoxicando suas aulas com um ar de psicose infecciosa mudando a postura dos moleques sentados nas mesas e das vadias se achando as "rainhas da boca do lixo". Então, tardes brilhavam vermelhas nas copas das árvores até a despercebida chegada da cinzenta noite, acompanhada do Professor que assumira de uma hora pra outra o destemido costume de cumprir o trajeto de sua casa à escola a pé, deixando o idoso veículo largado ao léu, na vaga em que estava desde àquela iluminada noite. O tal carro virou por certo tempo um tipo de monumento à indignação e expressão violenta dos artistas precoces das redondezas, a bandeira dum crescente caos nas ruas, fincada no estacionamento dizendo: "Virão outros e isso não vai acabar até que a sujeira entupa cada pedacinho dos seus pensamentos!" Foi aí que a grande lixeira começou a cuspir o lixo pra fora. O Professor era agora ameaçador, se tornara ponto de discussão em rodinhas seletas de gangues presentes no prédio e nos grupos dos atrofiados senhores da saleta das reuniões. Era o alvo do ataque das línguas do diabo, que não por nada falavam de perda de sanidade e fantasiavam horrores de criativa forma que acrescia o suspense e o interesse pelas aulas do Professor, como foi batizado no subsolo do mundo. É... Suas histórias estranhas foram passadas aos ouvidos do diretor do seu colégio, que deu logo um jeito de cutucar e tirar algo bom o bastante pra entreter uma conversa de balcão por noite adentro. Todos ouviam sobre a suposta vez que o Professor, repentinamente, sacou em aula uma pistola clássica da Segunda Guerra, daquelas usadas pelos Japoneses, e, por uma piada que provavelmente não apreciou muito, pôs na cabeça do humorista de bordel e o fez contar mais uma, desta vez sobre gordos, satirizando-o já que era "uma bola de carne gigante", como repetidas vezes disse ao ouvido do então apavorado rapaz. Certas atitudes começaram a lhe causar problemas, tendo em vista numerosas aulas interrompidas por seu senso de humor brutal e ríspido, se é que se podem chamar seus exemplos de humorados. Passava cada vez menos em casa, deixando a mulher uma pilha de nervos, e era bom. Tornou-se relapso em relação às dividas e relaxou de vez no outrora distinto trajar; era indistinguível dos demais que se viam a vomitar no pé das calças por aí, e seus olhos, nervosamente avermelhados e não mais azuis, indiferentes dos psicóticos ou drogados. Um trapo! A repulsa que tinham dele aumentava e empurrava-o com força maior ao penhasco no qual se dirigia em resposta contrária à sua covardia, no sentido mais puro desta palavra, que carregou desde os tenebrosos dias conseguintes à partida de seu pai, levado para debaixo de sete palmos de terra por um pequenino acidente, - uma bala de espingarda alocada na boca pelo "Senhor Braço forte" criando assim um puta buraco na cabeça que passou a cheirar churrasco e pólvora, seguidos de um abrupto derramamento de sangue do orifício, uma mancha nada agradável na parede em que se recostava o homem e no tapete um borrão sendo comparado agora a um prato de sopa de beterraba bem encorpada derramado - mas neste minuto que escorreu dentre os dedos até o seguinte, sua cabeça pulsante girou no lado sombrio da lua e voltou trazendo a confortante resposta que anos a fio procurou, e nada mais importava; a opinião alheia passou-lhe a ser um minúsculo ponto de observação que de nada valia comparado à magnitude de sua descoberta, seu lado vivo, real até onde ele quiser que seja, pois o muro entre sua impotência e o desejo de mudar alguma coisa fora derrubado, ou melhor, desintegrado, sem destroços para reconstrução... a jaula de um animal acuado há muito tempo fora escancarada. Nem mesmo ele tinha dimensão do que viria a tornar-se.."

VIDA COMUM pt.1

"Um homem cansado, caminhando com passos cansados, o andar cansado de um trabalhador cansado. Um professor seguindo pelos corredores lotados de um colégio, misturado ao mar de alunos, delinquentes em potencial indo de volta às ruas causando o pânico dos lojistas e trabalhadores refugiados em seus lares depois de um longo dia de trabalho. Carregando sua pasta de couro escuro, exausto por todo aquele imenso esforço não reconhecido de uma sala de aula repleta da juventude "punk", agora ele só quer deixar sua mente esquecer todas aquelas vozes vultosas que, certos dias, pareciam levar-lhe ao próprio inferno de tormento. Enquanto caminha pelo estacionamento vazio da escola pública onde leciona, até o seu carro, pensa no quão prazeroso seria voltar a ser criança, quando tinha uma mãe para dele cuidar, sem preocupações com bocas para alimentar ou com a conta do gás encanado que está para vencer, uma época perdida nos anos que voaram... Às vezes, pensava em sumir de repente, e largar toda a rotina cansativa que sua vida havia se tornado. Não sentia como se fosse covardia, nem mesmo ousava podar seus pensamentos da nostalgia. Realmente queria ter outra vida não àquela que tinha. Ainda não havia decidido se achava reconfortante ou torturante pensar em uma época sem responsabilidades, perdendo-se em memórias que lhe ofereciam mais do que o prato da realidade. “Desculpe-nos senhor, mas só servimos existência gelada”. Quando divagava, estava em seu adorado Comodoro verde que hoje ou deve estar coberto de poeira em um pátio de carros apreendidos ou em um cemitério de carcaças de velharias em um bairro suburbano qualquer. Podia sentir o vento cobrindo a face como um pano molhado, frio e rápido. O cheiro do banco de couro novinho, lustrado. Todo um mundo pintado em papel caro, amassado e jogado no lixo. Em certos momentos gostaria mesmo é de ter no porta-retratos, em lugar da foto da esposa, a foto do seu Comodoro, o tal que em seus dias de adolescência vivia a rodar, dado pelo "seu velho", o bombeiro hoje falecido Giuseppe Togniolli, conhecido pelos muitos amigos que tinha por "Braço-forte", lembrado pela vez em que numa pescaria com seus companheiros de infância e de bar, tinha comprado uma briga feia com um imenso peixe-espada rebatendo-se e puxando-o pra fora do pequeno barco no qual se encontravam, e que com igual maestria resistia aos trancos da besta marinha. Dava por uns poucos segundos pra sentir o cheiro dos peixes saltando nos seus pequenos pés de oito anos buscando fugir e implorando por mais uma tragada de fôlego, que se perdia a cada segundo ali... Onde um clarão seguido por uma buzina estrondosa o despertava de seu devaneio, revelava-o parado, impedindo a passagem de um automóvel em uma das vias de acesso ao estacionamento, cego pelos fortes faróis em seu rosto e ensurdecido também pelos grosseiros resmungos do condutor, fazendo seu coração saltar e pulsar dentro da sua boca aberta. Estava de volta ao mundo real, um lugar sujo onde os odores das valetas e de mofo se misturavam com o cheiro dos mendigos molhados e a fumaça dos escapamentos, transformando todo o lugar em uma filial de uma cantina coreana do centro velho de São Paulo. Bastava olhar em volta para perceber o que lhe incomodava tanto. Esta realidade era "realmente" mais surreal que os piores pesadelos de Giger. Era como se ao acordar, fosse sugado por um gigantesco ralo, e caísse nos esgotos esquecidos por um deus relapso, onde a lei dos ratos é a única coisa que, algumas vezes, ainda segue um padrão. Parecia até o sarcasmo de um criador mal humorado a frase que se dispunha diante dos olhos do professor de História rabiscada numa das paredes ao lado: "MUNDO DE MERDA!". Tudo pichado em letras enormes que saltavam da parede detrás de seu carro velho como um auto-relevo, explodindo em cores imundas que seriam capazes de derreter a mente de qualquer otimista republicano dopando-os da psicodélica visão ao redor. "-Não é o melhor lugar para estar uma hora destas! "-Pensou no momento que pôs os olhos castanhos no relógio barato. Vinte e três e cinquenta e oito. Ou seja, bem mais tarde do que ele gostaria de sair. Dando conta do horário, se apressou em retirar de seu bolso suas chaves, perdidas em meio ao trocado de frio metal ao toque, pedindo pra ser levada à tranca do carro e logo após, outra à fechadura de casa, sua redoma de papel, onde, ele esperava haver descanso afinal, mesmo sabendo que suas paredes não podiam impedir a entrada das suas neuroses. Mais uma para a sua rica coleção de infortúnios: goma de mascar pressionada contra a fechadura do seu Lada marrom 77, dificultando MUITO abrir o mesmo, seguida pelos artísticos arranhões contra a velha pintura, o desabafo de um aluno, ele apostaria, um tanto descontente com a avaliação semestral, como de fato, vez por outra acontecia em colégios públicos como este. Uma sensação de abandono o afligiu e então, não lamentando mais nem menos que qualquer dia, virou-se e tomou a direção da placa luminosa da saída do estacionamento, como se representasse uma saída verdadeira dali. Em passos agora sequencialmente mais rápidos, alcança a rua, e prossegue seu caminho. Seus pés, em um calçado conservador, faziam sons quase engraçados no instante que raspavam e estalavam no chão poçento, seguindo um ritmo mais parecido com uma canção dos anos vinte sendo posta em uma rotação mais e mais acelerada. Ele tenta dar um sinal para o coletivo que, além de não parar ainda o encharcou do conteúdo da barrenta poça às margens da via quando partiu, deixando o senhor, seu casaco e sua maleta de livros e correções em um estado de desolação; "Noites de Cão", era como seu pai dizia quando as coisas não iam bem, era como o pai dele também havia dito por sua vez. Restava continuar até chegar, cruzando com todo o tipo de gente nas calçadas, desde prostitutas seminuas cheirando alguma porcaria nos capôs dos carros estacionados e garotos integrantes de gangues com slogans anticristãos pregados em suas surradas jaquetas, até pastores de recentes cultos protestantes regozijando o clamor de seu deus aos berros a todos que por ali passavam e casais abraçados fugindo do frio cortante que fazia gelar a ponta do nariz e tornava visível a ofegante respiração típica das noites de Junho. O movimento cada vez menor nas ruas rasga a idéia de segurança que num pequeno instante instalou-se nele, tal uma garrafa que escorrega das mãos sem reação de impedir sua queda. Assim ele se viu ao virar uma esquina qualquer e deparou-se com uma imensidão de vazio; ninguém, nem som algum havia lá. Tomado pela sensação de Deja-vu, pensara ser ali o mesmo local citado em um livro de um escritor famoso dos anos 30 e que agora jaz no esquecimento; Em certo momento da história do tal livro, a própria essência do Nada rasgava a realidade, assim como as páginas do livro em mãos de um leitor ativo, traduzindo as experiências do protagonista aos olhos do já enlouquecido detetive, estático ao surgir da fissura abissal uma criatura que nem mesmo o autor ousara descrever. Nessas horas, seu cérebro estava tão cansado das tantas palavras e nomes históricos escritos a giz no quadro negro que um mero nome a mais para lembrar lhe fazia doer as têmporas. Estava sentindo a fadiga, uma dor de cabeça intensa, sua gravata apertava o colarinho. Ele soube que precisaria agora de um chuveiro quente e um espaço maior que o habitual de sua cama. Soube também, que lá estaria aquela que há eras distantes foi sua magra esposa, hoje nada menos que um monstro mutante, parecido com um réptil repleto de pura crueldade, policiando seu salário e torrando-o em baldes de frango frito e cosméticos que de nada lhe adiantavam; Também estariam lá todos os envelopes de contas a pagar, prestes a serem jogados em sua cara pela megera. Um pedacinho particular das entranhas do diabo... Estranhamente, a grande boca aberta do túnel à sua frente parecia-lhe ser até mesmo confortável, não fossem o vasto negrume que lá se encontrava a emitir sons, antes talvez só ouvidos pelos lunáticos, sons que assemelhavam a seu nome, vagamente, mas de forma peculiar, como se perdida ali estivesse a inconfundível voz rouca de seu pai, agrupada a uma centena de urros de demônios e almas atormentadas que Dante Alighieri descrevera na sua prosaica ida ao núcleo do inferno; quase enxergava a cena pular de lá, "O Círculo dos Glutões". Acreditou, por um segundo, ter enlouquecido de vez. Lembrou, por um mísero instante, a forma física alcançada por seu pai nos últimos dias de vida: pobre homem aposentado por invalidez, gordo e encharcado de bebida, um acabado. Os ventos gelados assobiavam enquanto rachavam seus lábios, pouco a pouco levando seus pensamentos a vagarem por campos obscuros da imaginação, um passaporte gratuito para as telas de Goya, com direito a pitadas de medo e calafrios pra acompanhar, enquanto seu olhar se perdia na tangível escuridão emergente do túnel e suas pernas recusando a manter a estabilidade. De sua boca trêmula saíam balbucios inaudíveis frenéticos consecutivos e, tentando agarrar-se às paredes mais próximas da ruela escura, era cada vez mais um indefeso e ridículo velho senil nas mãos de qualquer coisa que de lá saltasse à sua visão. -"Quem está aí?" - disse com pausas falhas, - "PAI?!" - tropeçando tanto em seu passo de recuo, quanto nas palavras apressadas. -"Apareça!" Dizendo coisas que racionalmente jamais diria, devido ao temor de seja lá quem ou o que fosse surgir no beco isolado, prosseguiu com seu apelo para que seu medo tomasse forma enfim, e seu pânico descabido do mundo escondido chegasse à uma conclusão. Não era possível correr ou refugiar-se em lugar algum então o outrora fraco professor, correndo suas mãos por entre as imundices do chão local, alcançou a primeira chave para sua calma, literalmente uma Chave Inglesa, coberta numa das extremidades com um material gosmento e grudento, irreconhecível na vasta mortalha, largada num canto do úmido beco, que o ajudou a se recompor como apoio e antes de sair dali, causar o maior estrago possível na fuça do indivíduo que 'pintasse na frente'. Antes fora estranho, mas nunca assim. A covardia em enfrentar o 'escuro' empenhava uma batalha ante a covardia de retornar ao lar e à vida enfadonha, e provaria com a vitória apenas a constante covardia inerente da ação e da atitude. Se recusasse a entrada, mostraria o quão fraco era em enfrentar o mundo e, se o inverso fosse, mostraria a fraqueza em encarar seu mundo. Era o que pensava, porém, foi coragem que ali nasceu e trouxe consigo a vontade de algo fazer pra mudar a situação, de não ser indiferente ao que internamente lhe afligia. Desistiu da idéia de livrar-se da existência como seu pai, no entanto, ganhou o kit completo: uma visão de que as coisas deveriam ser feitas do seu novo jeito, com violência e sarcasmo, humor e o pensamento fixo na sua segurança e bem estar, não importa quantos cadáveres seriam largados no percurso. Não mais temendo um levante das ruas contra sua pessoa, ele ergueu a cabeça e adentrou a gotejante e viscosa garganta de pedra, que se prolongava enquanto caminhava passo seguido de passo ao interior sem o fim sua visão descobrir.
Era excitante a sensação de poder e insegurança mesclando-se a seu sangue cada metro à frente, algo especial, diferente; Um pavor totalmente novo tomava posse dele, enquanto aquele outro, antigo e emprenhado, aos poucos se esvaía de sua lembrança. Nos minutos em que passou percorrendo o trajeto empunhando o artefato bizarro, talvez após um crime brutal descartado, não existiu dever de casa a corrigir, não houve Maria "Réptil", não houve credores e pela primeira vez, trouxe-lhe o encontro com sua essência, tanto buscada por anos a fio durante seus discursos em aula, na recriação de uma família ou no barco do seu saudoso "Braço-forte" deixado em alto mar e perdido do mundo, recriando na memória seus dias mais ricos... "

Ao Meu Pai

"Enquanto olhava pela janela do meu quarto a neve caindo de levinho na calçada lá fora, percebi que minha tia Penélope chamava lá de baixo. Afastei-me da janela, e tratei de tirar da tomada aquele aparelho de som que havia comprado num brechó de garagem ano passado com as economias que consegui entregando jornais para a Gazeta do Amanhã, o pequeno jornal do bairro. Sentei na cama, era bem macia e fez um barulho de molas rangendo baixinho. Olhei para os pôsteres de filmes que eu mesmo tinha colados no teto baixo, olhei meu armário vazio que estava de portas abertas e certifiquei de fechar a mala de viagem sob o colchão. Continha minhas roupas, um relógio de bolso que era do meu avô e um volume de capa verde-escuro do livro Moby Dick. Não era uma mala muito grande e pesava pouco também, era um pouco antiquada, mas isso a tornava mais bonita, com um toque de antiguidade. Peguei com a mão esquerda, enquanto a direita tentava alargar um pouco o colarinho daquela camisa, definitivamente aquele terno não fazia parte das minhas vestes comuns e num lugar apertava e noutros ficava largo por demais. Por fim saí do quarto deixando lá pedaços de minha infância e adolescência, desci as escadas sem pressa, olhando cada um dos retratos dispostos nas paredes, em alguns deles tocava de leve, só pra alinhar. Eram fotografias de passeios em parques e zoológicos da cidade, de meu pai e também do avô. Lembranças de aniversários e festividades com a casa cheia de familiares, noites natalinas e tardes de ação de graça, tinha aquela fotos da minha irmã caçula levada embora por mamãe após o divórcio alguns anos atrás, fotos de quando eu tinha 6 anos, todo sem jeito segurando a pequenina Valéria que acabara de vir ao mundo e fotos da fazenda de meu avô. Era pra onde iria agora, morar com o avô em sua fazenda próxima ao mar da Itália.

De onde eu estava era possível sentir o cheiro do chá de erva-doce servido para as poucas pessoas naquela sala, que me observavam com caras tristes e trajes negros recatados. Eu conhecia cada uma delas, do Senhor E Sra. Cesare, meus vizinhos, ao capelão Bernardi. Cada uma daquelas pessoas segurava uma pequena xícara com uma das mãos, estavam de pés conversando de maneira acatada entre si enquanto tia Penélope chegava da cozinha com uma bandeja prateada repleta de biscoitos de aveia e baunilha. Era o que ela fazia de melhor e com toda certeza estaria delicioso, mas eu estava sem apetite algum naquela manhã gelada. Mesmo assim, retirei um dos biscoitos da bandeja fazendo titia me entregar um riso singelo e gordinho como só o sorriso dela podia ser.

Deixei a mala diante de uma das poltronas de meu pai, titia ajeitava novamente minha gola e verificava se eu tinha esquecido de fechar corretamente aquele terno desconfortável, enquanto era notável que todos ali olhavam praquela cena. Vi no relógio da sala que faltava pouco para as dez da manhã e conforme os presentes ali se despediam com poucas palavras entrando em seus velhos carros estacionados lá na rua, me dei conta que aquela casa seria ocupada por estranhos, em breve vendida para pessoas que não saberiam que as paredes foram erguidas por meu pai, nem dariam valor algum para todas as risadas e festanças que passei por aqui. O enterro de meu pai aconteceu um dia antes, mas só agora, somente quando estava pra sair pela ultima vez da casa é que, olhando para aquela poltrona, senti como se ele ali estivesse acenando e sorrindo, daquele seu jeito tão peculiar, um adeus silencioso e fantasmagórico, tão diferente da vibração que o acompanhava em qualquer parte. Ficará nesta casa e enraizado nas minhas melhores memórias."

........................................................................ Bem, este é um trecho de um conto feito numa madrugada, não baseado em fatos reais mas inspirados em circunstâncias da minha infância com meu pai. As lembranças e coisas de familia.