sexta-feira, 15 de maio de 2009
VIDA COMUM pt.2
"Após aquela madrugada, sua vida não seria mais a mesma. Olhando de longe, ele poderia se passar por mais um insignificante professorzinho de segundo grau como outro qualquer, patético até, um rosto antiquado e abatido assim como os muitos presentes à frente de uma lousa nos colégios decréptos da ignorante São Paulo, porém, perdida em seus olhos, uma fagulha de felicidade e perversão que só podia ser vista muito de perto, coisa um tanto estúpida de se fazer em se tratar do novo homem que do preto fosso saiu, que claramente jogava todas as outras pessoas pra fora do seu recém criado mundo de fantasias onde ele era o construtor absoluto, o supremo criador dos sonhos e pesadelos do seu ego. Criou um herói da causa de seus medos e nunca mais refém destes; -"É... devo ensinar algumas coisinhas por aqui..."- era o que se pegava a dizer entre os intervalos das aulas em meio a um e outro copo de café da sala dos professores, por sinal, frio e amargo, imitando o comportamento dos outros velhos cansados sentados cada vez numa distância maior do estranho professor, de barba há dias sem fazer, mesma gravata bege com a ponta suja de lama e cabelos embaraçados como os de um garoto que se levanta às dezoito horas apenas para ir à escola buscar bagulho. Sua face enrugava conforme sorria para os alunos, nada falso, porém assustador, intoxicando suas aulas com um ar de psicose infecciosa mudando a postura dos moleques sentados nas mesas e das vadias se achando as "rainhas da boca do lixo". Então, tardes brilhavam vermelhas nas copas das árvores até a despercebida chegada da cinzenta noite, acompanhada do Professor que assumira de uma hora pra outra o destemido costume de cumprir o trajeto de sua casa à escola a pé, deixando o idoso veículo largado ao léu, na vaga em que estava desde àquela iluminada noite. O tal carro virou por certo tempo um tipo de monumento à indignação e expressão violenta dos artistas precoces das redondezas, a bandeira dum crescente caos nas ruas, fincada no estacionamento dizendo: "Virão outros e isso não vai acabar até que a sujeira entupa cada pedacinho dos seus pensamentos!" Foi aí que a grande lixeira começou a cuspir o lixo pra fora. O Professor era agora ameaçador, se tornara ponto de discussão em rodinhas seletas de gangues presentes no prédio e nos grupos dos atrofiados senhores da saleta das reuniões. Era o alvo do ataque das línguas do diabo, que não por nada falavam de perda de sanidade e fantasiavam horrores de criativa forma que acrescia o suspense e o interesse pelas aulas do Professor, como foi batizado no subsolo do mundo. É... Suas histórias estranhas foram passadas aos ouvidos do diretor do seu colégio, que deu logo um jeito de cutucar e tirar algo bom o bastante pra entreter uma conversa de balcão por noite adentro. Todos ouviam sobre a suposta vez que o Professor, repentinamente, sacou em aula uma pistola clássica da Segunda Guerra, daquelas usadas pelos Japoneses, e, por uma piada que provavelmente não apreciou muito, pôs na cabeça do humorista de bordel e o fez contar mais uma, desta vez sobre gordos, satirizando-o já que era "uma bola de carne gigante", como repetidas vezes disse ao ouvido do então apavorado rapaz. Certas atitudes começaram a lhe causar problemas, tendo em vista numerosas aulas interrompidas por seu senso de humor brutal e ríspido, se é que se podem chamar seus exemplos de humorados. Passava cada vez menos em casa, deixando a mulher uma pilha de nervos, e era bom. Tornou-se relapso em relação às dividas e relaxou de vez no outrora distinto trajar; era indistinguível dos demais que se viam a vomitar no pé das calças por aí, e seus olhos, nervosamente avermelhados e não mais azuis, indiferentes dos psicóticos ou drogados. Um trapo! A repulsa que tinham dele aumentava e empurrava-o com força maior ao penhasco no qual se dirigia em resposta contrária à sua covardia, no sentido mais puro desta palavra, que carregou desde os tenebrosos dias conseguintes à partida de seu pai, levado para debaixo de sete palmos de terra por um pequenino acidente, - uma bala de espingarda alocada na boca pelo "Senhor Braço forte" criando assim um puta buraco na cabeça que passou a cheirar churrasco e pólvora, seguidos de um abrupto derramamento de sangue do orifício, uma mancha nada agradável na parede em que se recostava o homem e no tapete um borrão sendo comparado agora a um prato de sopa de beterraba bem encorpada derramado - mas neste minuto que escorreu dentre os dedos até o seguinte, sua cabeça pulsante girou no lado sombrio da lua e voltou trazendo a confortante resposta que anos a fio procurou, e nada mais importava; a opinião alheia passou-lhe a ser um minúsculo ponto de observação que de nada valia comparado à magnitude de sua descoberta, seu lado vivo, real até onde ele quiser que seja, pois o muro entre sua impotência e o desejo de mudar alguma coisa fora derrubado, ou melhor, desintegrado, sem destroços para reconstrução... a jaula de um animal acuado há muito tempo fora escancarada. Nem mesmo ele tinha dimensão do que viria a tornar-se.."
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