sexta-feira, 15 de maio de 2009
VIDA COMUM pt.3
""Arrrrrggh!!!"
Um grito rompe todo o silêncio dormente no isolado corredor dos fundos da escola. O som percorre e preenche o local vibrando e fazendo tremerem as vidraças quase soltas do cortiço ao lado, onde os últimos raios do alaranjado sol teimam em refletirem, dando vazão repentinamente às sombras geladas lembrando um grande balde de tinta preta jogado do alto do edifício escolar escorrendo prédio abaixo. Um grave e estendido doloroso grito, bem próximo do urro que os ursos emitiriam se vissem um de seus filhotes agonizando, preso em um garrote de caça. Sua grisalha cabeça despenteada sofria o iminente ataque de uma dor descomunal, um tiro de espingarda seria mais sutil. De repente, quando caiu, em suas pernas de gravetos, então os paralelepípedos sua face encontrou.
Durante as dez horas estendidas de miragens nos dois a três minutos em que ficou desacordado sonhou com um precipício no qual caía, ouvia ao longe as ondas chegando à costa, uma revoada de gaivotas cantando em coro desorganizado ao tempo que o corpo frio e molhado, cuspido do alto mar e arrastado às primeiras areias idem um náufrago despertando aos crepusculares raios solares. Mantinha cerrados os dentes diante tamanho açoite, quando posto em pé pelas gordas e afáveis mãos da cozinheira começou a recordar onde estava e apagar o delírio. E, com a mesma velocidade que veio, o delírio se foi...
"- O senhor precisa é de um bom prato quente de sopa" - disse a mulher baixinha, traços hispânicos, de avental e touca, com a voz tão aconchegante quanto à poltrona de um casebre em Campos do Jordão, onde se podiam ver os balanços e os galhos flexionados pelos ventos contínuos vindos do sul e sentir o cheiro da terra após a chuva. Segurança se refletia nos pequenos gestos da pequenina senhora no banco de madeira no qual se sentava frente a ele, a vestia de Avó, e feito tal, empurrou em sua direção um quente e repleto de cheiros saudosos prato da sua sopa de ervas que o aqueceu e o fez esquecer-se do por que estava ali, naquela silenciosa e agradável conversa, fazendo-o esquecer da sua aula também.
Ela não perguntava, e ele por sua vez não respondia coisa sequer. Uma sala do tempo a cozinha, um panteão livre das questões e motivos, ele sem máscaras, ela sem vozes. A cabeça reclinada sobre o prato, verdes campos invadindo as narinas, roubando-lhe a atenção para a saída da cozinheira sem nome, que a falta só foi sentida ao breve levantar de cabeça tempo depois. Só, ele levantou. Tinha terminado a refeição, então seguiu sem pressa até a porta de madeira que sustentava um calendário de três anos atrás e num toque, abriu aquela que dava de encontro à viela tênebre quanto os pretos pêlos do cão deitado poucos passos a frente. Os estalos e ruídos da porta sem óleo nas dobradiças fizeram o cão ouriçar as orelhas, esporadicamente levantar e correr para longe, deixando o jornal no qual possivelmente estivera deitado há horas voar pelo estreito.
Um passo. Outro. Voltou pra casa sem perceber, estava lá e pronto. As chaves rodaram, ele pôs o casaco no cabideiro detrás da porta, deixou a visão ir de um canto a outro da sala espremida do "apertamento", a mulher esparramada no sofá e nela esparramados estavam restos de sanduíches carnosos, regada à luz azulada da TV, um riso pregado num canto da boca sujo do que deveria ser maionese, num sono profundo. Dava dó de pensar em Morpheus com a pobre criaturinha a ninar. A TV mal sintonizada num programa de ginástica quase o fez rir. Um erro cabal seria despertar a Bela Adormecida. Todos estavam felizes assim.
Em silêncio foi ao banheiro e deparou-se com uma cena nojenta até para Hannibal: pedaços de irreconhecíveis coisas nadavam no vaso, estendendo-se às bordas e parte do piso jade gasto. O fedor entrava com força pelo nariz e boca do Professor, forçando-o a cobri-los e retirar-se tão rápido sentiu o cheiro. Foi até a TV e a desligou desimportando agora se o assoalho rangia ou não. Pegou o casaco e saiu. Foi a última lembrança da noite anterior quando, às lambidas dum cão vadio, acordou, e jogado na calçada da Av. do Estado estava. O amargo gosto de cerveja e bile se confundiam com o gosto de despertar em sua boca, os olhos semi-fechados buscavam desembaçar a visão, e o sol mesmo obscurecido por nuvens cinza ainda lhe dava trabalho pra distinguir onde era chão e onde não era. Havia chegado ao ponto de não recordar onde morava, e o vômito que cobria parte do seu ombro era prova de que algo tinha de ser feito.
Juntou os míseros trocados, uns R$ 20,00 e cambaleou até a escada espremida de uma casa de Strip logo ali que, no caso, poderia ser o mesmo lugar onde passara a noite toda enchendo a cara, mas era o lugar onde poderia chegar mais rápido e poder encontrar um pouco d'água para se lavar antes de cair em tropeços causados pela embriaguês. Aos trancos foi subindo e por sorte não desabou do ápice dos cinqüenta degraus. Como não havia ninguém na recepção, largou as moedas sobre o balcão e foi logo entrando, e olhando pelo corredor do bordel, uma porta encontrava-se escancarada diante dele. Entrou, foi seguindo na direção do banheiro somente um pouco mais limpo que o seu no momento, e lá estava uma banheira cheia de água quente que o convenceu a pôr a mão pra testar a temperatura; "- Está ótima." - sem que preocupasse com um devido residente do quartinho. Tirou o casaco e os sapatos com a lentidão dos idosos, e os colocou lado a lado recostados numa chinela de couro posta abaixo dum roupão de banho branco pendurado num gancho de parede, retirou as calças, afrouxou a gravata e desabotoou a camisa, desajeitadamente arrancou-lhe um botão que ao cair, rolou pelo piso e enfiou-se num canto do ralo no chão nem caindo nem se desprendendo, como descobriu ao tentar pegá-lo.
Entrou na banheira. Foi escorregando e permitiu-se o afundar por completo. O som não significava nada dentro daquele mundo, e ele era grato por isso. De lá, via o teto de gesso como um caleidoscópio albino e o tremular brando dava vida ao roupão, um fantasma de lençol, como nos desenhos animados. Viu o aproximar de um vulto grande cobrir a luz que passava pela porta aberta do banheiro, aproximar e repentinamente retirar detrás das costas um objeto de um meio metro em forma de "L", "a chave inglesa!"
Tornou do fundo com o olhar fixo na figura, mas, no entanto, fora d'água ninguém encontrou. Ergueu-se e saiu, cobriu o corpo com o roupão. O vapor era muito denso e o obrigou a esfregar a manga no espelho pra poder se ver. Seu rosto era diferente, outra pessoa, e seus olhos azuis eram mais escuros que nanquim. Aproximou-se mais e reparou que eles tinham a exata forma de um ralo; até o botão da camisa estava lá. Daí, num reflexo perdido no embaçado, viu o vulto novamente, mas não tão rápido quanto esperava.
Uma enorme mão segurou sua cabeça com força enlaçando os dedos em seus cabelos e empurrando-o contra o espelho, que pela pancada foi estilhaçado estranhamente sem causar um titilar sequer. O roupão coloriu-se de vermelho num jorrar que não se sabia vir da boca ou nariz, deixando a clareza de que o rosto do professor agora realmente não seria mais o mesmo. Ficou tonto, rodou e levou a mão ao rosto, sendo golpeado pelo ferro na nuca. Caiu com metade do corpo dentro da piscina rósea e ao tentar sair dali, foi impedido pelos fortes braços do grandalhão. Seu ar estava fugindo dos pulmões em meio aos surdos gritos que emitia, as bolhas de ar eram tantas que o impediam de discernir se o que via diante da fuça era porcelana rachada da banheira ou suas veias saindo dos orifícios buconasais e outros criados pelo estrago no crânio.
Sua agonia em busca de respirar foi tamanha, porém as grandes mãos o seguravam submerso, mas não seria este o fim, não sem respostas. Lutava com todas as forças, até que num espasmo volveu de onde estivera: havia relaxado completamente ao ponto de ter dormido e quase afogado no leito. Assustado ainda pelo descuido deu fim ao desastroso descanso, percebendo a aura estranha em que o lugar estava envolto logo que seus olhos se abriram. O sonho foi real até demais e certamente o levaria a falecer, caso já não estivesse sóbrio.
Fez como no sonho, levantou e o roupão branco vestiu. Ouvindo no cômodo seguinte o mesmo som que o de sua batalha borbulhante em recuperar o fôlego, passou a ir a sua direção, e quando lá chegou ficou pasmo e certo que ainda haveria de despertar. A boca nem fechava e pregou os olhos na coisa que se banqueteava à mesa quadrada do quarto, rangendo os restantes dentes que pendiam. A carcaça pôs-se a falar, com um pedaço de carne crua arrancado de uma iguaria em seu prato posto mais parecida com um órgão humano.
"-Um estômago... humano... sim senhor!" - disse o cadáver decomposto de seu pai, enquanto mastigava desengonçadamente um pedaço do bife preso ao garfo, demonstrando certo esforço pra serrar a carne. "-Mais precisamente o de sua esposa. Sabe moleque, ela já estava... abusando, então eu peguei... pra mim o que ela... maltratava tanto. Eu aceito um agradecimento..."
"-Você está morto há anos, nunca apareceu nem nos meus aniversários então fale logo o que você quer?" - respondeu enquanto encarava o viscoso defunto.
"-A queridinha Maria sentia vergonha de si, até tentou evitar seu... estado deplorável. Sempre chorava quando seu amado maridinho não voltava após o serviço, que dó! '[NHAC!]'(finalmente engolindo o naco sangrento) A coitada nos seus últimos dias vomitou sem parar pensando que assim ficaria magricela. Não é pra rir? Fiz um favorzinho pra você" - prosseguiu meio as próprias risadas macabras sem levantar a face em direção ao Professor "- por que você não senta aí e ouve o que eu vim te dizer, depois vai pra casa e dá um pouquinho de prazer pra pobrezinha hein?"
Os miolos pulsavam pelo arrombo na extremidade do morto e escorriam conforme o maxilar abria e fechava feito um suculento bolo de nozes. Curiosamente, estranhava e reparava a aparência nada peculiar do cérebro do ser, ignorando a presença do ser em si, sem questionar se os sentidos o confundiam. Cerrou os olhos por certo tempo, e os abriu notando que o barulho irritante do garfo e faca raspando na louça não cessaria com o feito, já certo de que sua mente não era mais sã. Decidiu calar-se. Estava entregue à situação.
"-Você passará por dias horríveis... filho. E noites. E você vai tombar... frente à grande peste que assola essa terra. Você ainda irá rezar pra ter de volta a vida que rejeita. Vai chorar, conhecerá a dor... antes de iniciar uma guerra maior... dentro da sua cabeça... e se perder, então você estará comigo. Na noite que você viu... a Noite... naquele beco, eu atendi seus chamados, te chamei. Espero não ter de chocar seu rostinho de bicha de novo contra um espelho pra você entender o que vim dizer. A praga devorará você, começando por dentro até não couber mais... seja forte e entenda o que você é. Não deixe que dobrem você e não sinta medo, não seja um covarde... Faça o que digo e não o que fiz!"
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