sexta-feira, 15 de maio de 2009

Ao Meu Pai

"Enquanto olhava pela janela do meu quarto a neve caindo de levinho na calçada lá fora, percebi que minha tia Penélope chamava lá de baixo. Afastei-me da janela, e tratei de tirar da tomada aquele aparelho de som que havia comprado num brechó de garagem ano passado com as economias que consegui entregando jornais para a Gazeta do Amanhã, o pequeno jornal do bairro. Sentei na cama, era bem macia e fez um barulho de molas rangendo baixinho. Olhei para os pôsteres de filmes que eu mesmo tinha colados no teto baixo, olhei meu armário vazio que estava de portas abertas e certifiquei de fechar a mala de viagem sob o colchão. Continha minhas roupas, um relógio de bolso que era do meu avô e um volume de capa verde-escuro do livro Moby Dick. Não era uma mala muito grande e pesava pouco também, era um pouco antiquada, mas isso a tornava mais bonita, com um toque de antiguidade. Peguei com a mão esquerda, enquanto a direita tentava alargar um pouco o colarinho daquela camisa, definitivamente aquele terno não fazia parte das minhas vestes comuns e num lugar apertava e noutros ficava largo por demais. Por fim saí do quarto deixando lá pedaços de minha infância e adolescência, desci as escadas sem pressa, olhando cada um dos retratos dispostos nas paredes, em alguns deles tocava de leve, só pra alinhar. Eram fotografias de passeios em parques e zoológicos da cidade, de meu pai e também do avô. Lembranças de aniversários e festividades com a casa cheia de familiares, noites natalinas e tardes de ação de graça, tinha aquela fotos da minha irmã caçula levada embora por mamãe após o divórcio alguns anos atrás, fotos de quando eu tinha 6 anos, todo sem jeito segurando a pequenina Valéria que acabara de vir ao mundo e fotos da fazenda de meu avô. Era pra onde iria agora, morar com o avô em sua fazenda próxima ao mar da Itália.

De onde eu estava era possível sentir o cheiro do chá de erva-doce servido para as poucas pessoas naquela sala, que me observavam com caras tristes e trajes negros recatados. Eu conhecia cada uma delas, do Senhor E Sra. Cesare, meus vizinhos, ao capelão Bernardi. Cada uma daquelas pessoas segurava uma pequena xícara com uma das mãos, estavam de pés conversando de maneira acatada entre si enquanto tia Penélope chegava da cozinha com uma bandeja prateada repleta de biscoitos de aveia e baunilha. Era o que ela fazia de melhor e com toda certeza estaria delicioso, mas eu estava sem apetite algum naquela manhã gelada. Mesmo assim, retirei um dos biscoitos da bandeja fazendo titia me entregar um riso singelo e gordinho como só o sorriso dela podia ser.

Deixei a mala diante de uma das poltronas de meu pai, titia ajeitava novamente minha gola e verificava se eu tinha esquecido de fechar corretamente aquele terno desconfortável, enquanto era notável que todos ali olhavam praquela cena. Vi no relógio da sala que faltava pouco para as dez da manhã e conforme os presentes ali se despediam com poucas palavras entrando em seus velhos carros estacionados lá na rua, me dei conta que aquela casa seria ocupada por estranhos, em breve vendida para pessoas que não saberiam que as paredes foram erguidas por meu pai, nem dariam valor algum para todas as risadas e festanças que passei por aqui. O enterro de meu pai aconteceu um dia antes, mas só agora, somente quando estava pra sair pela ultima vez da casa é que, olhando para aquela poltrona, senti como se ele ali estivesse acenando e sorrindo, daquele seu jeito tão peculiar, um adeus silencioso e fantasmagórico, tão diferente da vibração que o acompanhava em qualquer parte. Ficará nesta casa e enraizado nas minhas melhores memórias."

........................................................................ Bem, este é um trecho de um conto feito numa madrugada, não baseado em fatos reais mas inspirados em circunstâncias da minha infância com meu pai. As lembranças e coisas de familia.

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