"Um homem cansado, caminhando com passos cansados, o andar cansado de um trabalhador cansado. Um professor seguindo pelos corredores lotados de um colégio, misturado ao mar de alunos, delinquentes em potencial indo de volta às ruas causando o pânico dos lojistas e trabalhadores refugiados em seus lares depois de um longo dia de trabalho. Carregando sua pasta de couro escuro, exausto por todo aquele imenso esforço não reconhecido de uma sala de aula repleta da juventude "punk", agora ele só quer deixar sua mente esquecer todas aquelas vozes vultosas que, certos dias, pareciam levar-lhe ao próprio inferno de tormento. Enquanto caminha pelo estacionamento vazio da escola pública onde leciona, até o seu carro, pensa no quão prazeroso seria voltar a ser criança, quando tinha uma mãe para dele cuidar, sem preocupações com bocas para alimentar ou com a conta do gás encanado que está para vencer, uma época perdida nos anos que voaram... Às vezes, pensava em sumir de repente, e largar toda a rotina cansativa que sua vida havia se tornado. Não sentia como se fosse covardia, nem mesmo ousava podar seus pensamentos da nostalgia. Realmente queria ter outra vida não àquela que tinha. Ainda não havia decidido se achava reconfortante ou torturante pensar em uma época sem responsabilidades, perdendo-se em memórias que lhe ofereciam mais do que o prato da realidade. “Desculpe-nos senhor, mas só servimos existência gelada”.
Quando divagava, estava em seu adorado Comodoro verde que hoje ou deve estar coberto de poeira em um pátio de carros apreendidos ou em um cemitério de carcaças de velharias em um bairro suburbano qualquer. Podia sentir o vento cobrindo a face como um pano molhado, frio e rápido. O cheiro do banco de couro novinho, lustrado. Todo um mundo pintado em papel caro, amassado e jogado no lixo.
Em certos momentos gostaria mesmo é de ter no porta-retratos, em lugar da foto da esposa, a foto do seu Comodoro, o tal que em seus dias de adolescência vivia a rodar, dado pelo "seu velho", o bombeiro hoje falecido Giuseppe Togniolli, conhecido pelos muitos amigos que tinha por "Braço-forte", lembrado pela vez em que numa pescaria com seus companheiros de infância e de bar, tinha comprado uma briga feia com um imenso peixe-espada rebatendo-se e puxando-o pra fora do pequeno barco no qual se encontravam, e que com igual maestria resistia aos trancos da besta marinha. Dava por uns poucos segundos pra sentir o cheiro dos peixes saltando nos seus pequenos pés de oito anos buscando fugir e implorando por mais uma tragada de fôlego, que se perdia a cada segundo ali...
Onde um clarão seguido por uma buzina estrondosa o despertava de seu devaneio, revelava-o parado, impedindo a passagem de um automóvel em uma das vias de acesso ao estacionamento, cego pelos fortes faróis em seu rosto e ensurdecido também pelos grosseiros resmungos do condutor, fazendo seu coração saltar e pulsar dentro da sua boca aberta. Estava de volta ao mundo real, um lugar sujo onde os odores das valetas e de mofo se misturavam com o cheiro dos mendigos molhados e a fumaça dos escapamentos, transformando todo o lugar em uma filial de uma cantina coreana do centro velho de São Paulo. Bastava olhar em volta para perceber o que lhe incomodava tanto. Esta realidade era "realmente" mais surreal que os piores pesadelos de Giger. Era como se ao acordar, fosse sugado por um gigantesco ralo, e caísse nos esgotos esquecidos por um deus relapso, onde a lei dos ratos é a única coisa que, algumas vezes, ainda segue um padrão.
Parecia até o sarcasmo de um criador mal humorado a frase que se dispunha diante dos olhos do professor de História rabiscada numa das paredes ao lado: "MUNDO DE MERDA!". Tudo pichado em letras enormes que saltavam da parede detrás de seu carro velho como um auto-relevo, explodindo em cores imundas que seriam capazes de derreter a mente de qualquer otimista republicano dopando-os da psicodélica visão ao redor. "-Não é o melhor lugar para estar uma hora destas! "-Pensou no momento que pôs os olhos castanhos no relógio barato. Vinte e três e cinquenta e oito. Ou seja, bem mais tarde do que ele gostaria de sair.
Dando conta do horário, se apressou em retirar de seu bolso suas chaves, perdidas em meio ao trocado de frio metal ao toque, pedindo pra ser levada à tranca do carro e logo após, outra à fechadura de casa, sua redoma de papel, onde, ele esperava haver descanso afinal, mesmo sabendo que suas paredes não podiam impedir a entrada das suas neuroses.
Mais uma para a sua rica coleção de infortúnios: goma de mascar pressionada contra a fechadura do seu Lada marrom 77, dificultando MUITO abrir o mesmo, seguida pelos artísticos arranhões contra a velha pintura, o desabafo de um aluno, ele apostaria, um tanto descontente com a avaliação semestral, como de fato, vez por outra acontecia em colégios públicos como este. Uma sensação de abandono o afligiu e então, não lamentando mais nem menos que qualquer dia, virou-se e tomou a direção da placa luminosa da saída do estacionamento, como se representasse uma saída verdadeira dali. Em passos agora sequencialmente mais rápidos, alcança a rua, e prossegue seu caminho. Seus pés, em um calçado conservador, faziam sons quase engraçados no instante que raspavam e estalavam no chão poçento, seguindo um ritmo mais parecido com uma canção dos anos vinte sendo posta em uma rotação mais e mais acelerada. Ele tenta dar um sinal para o coletivo que, além de não parar ainda o encharcou do conteúdo da barrenta poça às margens da via quando partiu, deixando o senhor, seu casaco e sua maleta de livros e correções em um estado de desolação; "Noites de Cão", era como seu pai dizia quando as coisas não iam bem, era como o pai dele também havia dito por sua vez.
Restava continuar até chegar, cruzando com todo o tipo de gente nas calçadas, desde prostitutas seminuas cheirando alguma porcaria nos capôs dos carros estacionados e garotos integrantes de gangues com slogans anticristãos pregados em suas surradas jaquetas, até pastores de recentes cultos protestantes regozijando o clamor de seu deus aos berros a todos que por ali passavam e casais abraçados fugindo do frio cortante que fazia gelar a ponta do nariz e tornava visível a ofegante respiração típica das noites de Junho.
O movimento cada vez menor nas ruas rasga a idéia de segurança que num pequeno instante instalou-se nele, tal uma garrafa que escorrega das mãos sem reação de impedir sua queda. Assim ele se viu ao virar uma esquina qualquer e deparou-se com uma imensidão de vazio; ninguém, nem som algum havia lá. Tomado pela sensação de Deja-vu, pensara ser ali o mesmo local citado em um livro de um escritor famoso dos anos 30 e que agora jaz no esquecimento; Em certo momento da história do tal livro, a própria essência do Nada rasgava a realidade, assim como as páginas do livro em mãos de um leitor ativo, traduzindo as experiências do protagonista aos olhos do já enlouquecido detetive, estático ao surgir da fissura abissal uma criatura que nem mesmo o autor ousara descrever. Nessas horas, seu cérebro estava tão cansado das tantas palavras e nomes históricos escritos a giz no quadro negro que um mero nome a mais para lembrar lhe fazia doer as têmporas. Estava sentindo a fadiga, uma dor de cabeça intensa, sua gravata apertava o colarinho. Ele soube que precisaria agora de um chuveiro quente e um espaço maior que o habitual de sua cama. Soube também, que lá estaria aquela que há eras distantes foi sua magra esposa, hoje nada menos que um monstro mutante, parecido com um réptil repleto de pura crueldade, policiando seu salário e torrando-o em baldes de frango frito e cosméticos que de nada lhe adiantavam; Também estariam lá todos os envelopes de contas a pagar, prestes a serem jogados em sua cara pela megera. Um pedacinho particular das entranhas do diabo...
Estranhamente, a grande boca aberta do túnel à sua frente parecia-lhe ser até mesmo confortável, não fossem o vasto negrume que lá se encontrava a emitir sons, antes talvez só ouvidos pelos lunáticos, sons que assemelhavam a seu nome, vagamente, mas de forma peculiar, como se perdida ali estivesse a inconfundível voz rouca de seu pai, agrupada a uma centena de urros de demônios e almas atormentadas que Dante Alighieri descrevera na sua prosaica ida ao núcleo do inferno; quase enxergava a cena pular de lá, "O Círculo dos Glutões". Acreditou, por um segundo, ter enlouquecido de vez. Lembrou, por um mísero instante, a forma física alcançada por seu pai nos últimos dias de vida: pobre homem aposentado por invalidez, gordo e encharcado de bebida, um acabado. Os ventos gelados assobiavam enquanto rachavam seus lábios, pouco a pouco levando seus pensamentos a vagarem por campos obscuros da imaginação, um passaporte gratuito para as telas de Goya, com direito a pitadas de medo e calafrios pra acompanhar, enquanto seu olhar se perdia na tangível escuridão emergente do túnel e suas pernas recusando a manter a estabilidade. De sua boca trêmula saíam balbucios inaudíveis frenéticos consecutivos e, tentando agarrar-se às paredes mais próximas da ruela escura, era cada vez mais um indefeso e ridículo velho senil nas mãos de qualquer coisa que de lá saltasse à sua visão.
-"Quem está aí?" - disse com pausas falhas, - "PAI?!" - tropeçando tanto em seu passo de recuo, quanto nas palavras apressadas. -"Apareça!"
Dizendo coisas que racionalmente jamais diria, devido ao temor de seja lá quem ou o que fosse surgir no beco isolado, prosseguiu com seu apelo para que seu medo tomasse forma enfim, e seu pânico descabido do mundo escondido chegasse à uma conclusão. Não era possível correr ou refugiar-se em lugar algum então o outrora fraco professor, correndo suas mãos por entre as imundices do chão local, alcançou a primeira chave para sua calma, literalmente uma Chave Inglesa, coberta numa das extremidades com um material gosmento e grudento, irreconhecível na vasta mortalha, largada num canto do úmido beco, que o ajudou a se recompor como apoio e antes de sair dali, causar o maior estrago possível na fuça do indivíduo que 'pintasse na frente'.
Antes fora estranho, mas nunca assim. A covardia em enfrentar o 'escuro' empenhava uma batalha ante a covardia de retornar ao lar e à vida enfadonha, e provaria com a vitória apenas a constante covardia inerente da ação e da atitude. Se recusasse a entrada, mostraria o quão fraco era em enfrentar o mundo e, se o inverso fosse, mostraria a fraqueza em encarar seu mundo. Era o que pensava, porém, foi coragem que ali nasceu e trouxe consigo a vontade de algo fazer pra mudar a situação, de não ser indiferente ao que internamente lhe afligia. Desistiu da idéia de livrar-se da existência como seu pai, no entanto, ganhou o kit completo: uma visão de que as coisas deveriam ser feitas do seu novo jeito, com violência e sarcasmo, humor e o pensamento fixo na sua segurança e bem estar, não importa quantos cadáveres seriam largados no percurso. Não mais temendo um levante das ruas contra sua pessoa, ele ergueu a cabeça e adentrou a gotejante e viscosa garganta de pedra, que se prolongava enquanto caminhava passo seguido de passo ao interior sem o fim sua visão descobrir.
Era excitante a sensação de poder e insegurança mesclando-se a seu sangue cada metro à frente, algo especial, diferente; Um pavor totalmente novo tomava posse dele, enquanto aquele outro, antigo e emprenhado, aos poucos se esvaía de sua lembrança. Nos minutos em que passou percorrendo o trajeto empunhando o artefato bizarro, talvez após um crime brutal descartado, não existiu dever de casa a corrigir, não houve Maria "Réptil", não houve credores e pela primeira vez, trouxe-lhe o encontro com sua essência, tanto buscada por anos a fio durante seus discursos em aula, na recriação de uma família ou no barco do seu saudoso "Braço-forte" deixado em alto mar e perdido do mundo, recriando na memória seus dias mais ricos... "
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