
Faz vinte anos que, numa cidadezinha interiorana a uns 90 km daqui, quando eu ainda era um infante e meu pai e meus tios me levavam para pescar, aconteceu o inverno mais inesquecível da minha vida. Mesmo hoje, 1940, eu não consegui tirar da cabeça o dia no bosque próximo àquele lago que costumávamos pescar.
Na noite anterior a todas as pescarias, tinha que dormir cedo com a promessa de me comportar lá, pois ninguém gostava de crianças em pescarias por serem barulhentas e sempre afastarem os peixes. Contrariando minha mãe, que não gostava nada quando me levavam pra lá. É que eu tinha estomago fraco e voltava sempre “botando as tripas pra fora”, mesmo assim eu batia o pé para deixar que eu fosse. Então dada às sete da noite não tinha escolha: cama!
Noutro dia, cinco da matina e mesmo pregado de sono eu estava lá de pé ansioso pra participar daquela reunião dos homens da família. Algumas vezes o meu sono era tamanho que me deixavam pra trás. Era inverno, acho que Julho, e meu pai ali de pé na cozinha já estava a fazer seu café. Eu esperava quieto, tomava um copo de leite morno com achocolatado, apesar de eu sempre vomitar em viagens quando bebia muito leite. Uma buzinada lá fora era o sinal que meus tios haviam chego e como sempre, estavam com pressa. Tudo pronto, eu bem agasalhado, saímos com nossa sacola cheia de anzóis e linhas de pesca, potes de maionese vazios e pazinhas que seriam usadas para pegar minhocas quando chegássemos. Lembro que eram viagens demoradas dentro do fusca azul do meu tio, mesmo que meu primo fosse conosco e que no caso sempre era uma distração, um entretenimento mais adequado já que tínhamos a mesma idade, ainda assim eram viagens cansativas na qual dormíamos uma parte do trajeto.
Quando estavam de bom humor me deixavam levar meu cão, que por onde eu estava o levava. Seu nome era Cachorro, lembro bem da coleirinha que fiz com seu nome. Eu sei, era um nome bem idiota, mas eu era um garoto e nem sei explicar os motivos dessa escolha além do óbvio. Ele era um vira-lata e geralmente eu ficava mais calmo quando estava na companhia do meu amigo preto e branco.
Nesta ocasião, iam dois tios meus, meu pai, meu cão e eu. Choveu a noite inteira e a viagem pareceu então mais longa ainda. Durante o trajeto lembrei-me de mamãe, que não estava mais conosco e meu pai dizia ter viajado pra longe. Ao invés de irmos direto para o lago, chegando à cidade pegamos uma estradinha de terra cercada de goiabeiras e entramos num pequeno rancho. Quiseram parar pra pegar uns frutos e tão logo a porta abriu, Cachorro saltou e correu pelo grande gramado ao lado. Era quase oito da manhã, e como já disse, choveu durante a noite. Agora restava só uma garoínha. Eu estava ouvindo a barriga roncar então aceitei um dos frutos que meu tio me ofereceu. Sua casca verdinha até brilhava, lustrosa. Tinha cheiro de coisas do mato assim como todo o lugar. Mordi a pequena goiaba e um gosto de fruta estragada encheu minha boca. Foi muito desagradável nem precisa dizer né. Pior que ainda riram de mim pela careta que fiz ao cuspir aquele teco nojento de goiaba longe. Decidi correr atrás do meu cão e deixá-los com suas risadinhas. Era um gramado plano e mesmo à distância podia ver onde estava o fusca e também mais à frente onde estava a casa do Sr. Firmino e sua esposa Dona Célia. Cachorro corria brincando com um graveto e quanto mais eu me aproximava dele mais ele corria de mim em direção da casa velha. Conforme meu cão se aproximava de lá eu diminuía meu ritmo até que parei quando ele deu a volta por trás da casa, na direção do bosque logo adiante, e o perdi de vista. Eu não gostava daquela casa, era iluminada apenas por lampiões a gás que criavam sombras pelos cantos, tinham quadros estranhos de crianças chorando e alguns cômodos estavam sempre trancados e por mais que apenas os padrinhos de meu pai morassem ali, certa noite que pousamos lá, mamãe ouviu diversos ruídos de móveis sendo arrastados dentro daqueles quartos, e foi a única e última vez que ela viria conosco. Lembro que ela odiava tudo no local.
Voltei correndo pro carro, percebi que eles não estavam lá. Tranquei-me no fusca e fechei os vidros. Senti-me sozinho, queria chamar por eles, porém fiquei quieto e em uns minutos eles apareceram de novo. Disseram que tinham visto um tatu e que tentaram pegá-lo. Falei que Cachorro tinha se perdido, mas mal me deram ouvidos. Eu estava preocupado, pois era um bosque bem fechado e escuro, os raios de sol mal passavam pelas folhagens das copas das árvores de lá e Cachorro devia de estar assustado. Logo ele voltaria, disseram. Eu não estava tão certo disso.
Limpamos os pés sujos de barro em um ferro posto perto à porta especificamente pra isso e entramos. Os homens deixaram seus casacos nos ganchinhos que tinham atrás da porta e trataram de chamar o Sr. Firmino, que aparentemente não estava por ali. Havia muito pó sobre aqueles móveis coloniais pretos, e um monte de panelas antigas penduradas numa espécie de varal na cozinha. Ah, não havia fogão como aqueles que tínhamos em casa, era algo feito de tijolinhos e barro batido, com um buraco enegrecido com lenha e carvão dentro. Uma coisa bem curiosa e contrastante com o lugar era o gramofone encostado ao lado de uma poltrona antiga na sala. Tinha até uma manivela no artefato e tinha um disco pequeno de vinil tocando. Era uma ópera, tocava tão baixinho que suspeito que ninguém a não ser eu a notou. Decidiram ir logo para o lago e voltarmos a tempo do almoço. Eu não queria ir sem meu cão e não queria ficar ali também, mas não havia escolha e fui com eles.
As memórias de uma criança nem sempre são muito nítidas e às vezes me questiono se era imaginação demasiada minha quando saindo de lá avistei o Sr. Firmino totalmente enlameado da cintura pra baixo e com um machado numa das mãos. Fiquei assustadíssimo, a visão me deixou mudo e assim eu fiquei enquanto o fusca se afastava.
Eles até estranharam que durante a pesca eu tenha ficado tão comportado, mas não era dia pra peixe e a pesca rendeu poucas tilápias. Ajudei a pegar minhocas, a tirar os peixes dos anzóis, e nada me despreocupava. Acompanhei o silêncio daqueles homens por frias horas, pus minhas mãos nos bolsos do casaco vermelho que vestia e sentei cabisbaixo até que decidiram que era bom me levar pra comer. Enquanto voltávamos, me distraí desenhando cachorros nos vidros embaçados do carro, um dos meus tios sorriu pra mim e falou que tudo ficaria bem depois de uma boa refeição. E de fato, seria impossível esquecer o gosto das canjas que Dona Célia preparava, era uma cozinheira de mão cheia. Enchia de cheiros a cozinha toda e não foi diferente desta vez. Tão logo entramos os aromas preencheram o ambiente e até eu me animei um pouco mais. A velha senhora estava lá mexendo no panelão alguma iguaria sem par e sem muitas cordialidades seguiu dizendo que era melhor comermos antes que esfriasse. Mamãe teria brigado comigo por sentar à mesa sem ter lavado as mãos, mas nenhum dos mais velhos me exigiu coisa sequer. Sentavam-se todos falando ao mesmo tempo e as risadas altas me relaxaram e logo até eu estava sorrindo com os gracejos do Sr. Firmino.
Na mesa, tinham além dos pratos de alumínio esmaltado, canecas com o que parecia suco de limão e também amoras numa tigelinha. Tudo era bom. Como das outras vezes que tinha ido pra lá, todos comemos muito enquanto conversávamos e brincávamos. O cozido desmanchava na boca, macio e suculento. Eu já havia comido até empanturrar quando notei dentro da panela de cozido algo reluzindo, que retirei com uma colher de pau e coloquei no meu prato já vazio. Era como uma moeda de prata... Era a medalhinha onde estava escrito o nome do meu cão. Num pulo saí da mesa subitamente, enquanto todos paravam e me olhavam, eu apavorado com uma voz que lutava pra sair, perguntei:“—Onde está minha mãe?!”
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